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Afetos

Decorria o ano de 2012 quando conheci o casal França...e que casal!
Ele alto e bem parecido, mas infelizmente algo já debilitado pela doença.Ela, nariz arrebitado, dona da sua casa e não a favor de "gente estranha" ao seu redor.
Quem estivesse atento ao discurso, rapidamente percebia que o Alzheimer tomava conta da sua cabeça, mas o marido, com uma paciência e calma difícil de encontrar nos cuidadores ao fim de tanto tempo lá ia tentando responder às questões da amada.

A 5 de outubro de 2012 entro naquela casa pela primeira vez sozinha...com a árdua tarefa de acompanhar ao fim do dia a D. Conceição, uma vez que o marido já tinha falecido.
Ia um pouco receosa pela abordagem inicial e já com um pré-aviso do feitio bastante difícil da senhora. Juntando o facto de ter de lidar com o luto, piorava tudo. Mas lá fui...
Toquei a campainha e mal a porta se abre, vejo uns olhos esbugalhados, saídos de uma cara séria, aspeto circunspecto..."Quem é você?", pergunta com uma voz segura e altiva...

Voz essa que foi ganhando alento com o passar dos dias.Voz essa à qual se juntaram sorrisos, gargalhadas, rabujes,teimosias e muito afeto...muito!
Entendemo-nos muito bem. Existiam noites em que ralhávamos as duas, outras em que chorávamos juntas, e outras em que riamos que parecia uma casa de gente maluca, como ela costumava dizer!

Expressões como desculpe?!,oh faz favor!, isto assim não pode ser, pensa que vem para aqui mandar? ai ai hoje não vem boa, ou interrogações como mas isto aqui não parece o circo?, gosta muito de mim não gosta?, não me vai deixar pois não?, amanhã vem cá outra vez? fizeram parte dos nossos dias e eu gostava muito deles.

Mesmo naqueles dias em que estava mais baralhada, a D. Conceição conseguia perceber quando eu não estava a 100%, quando estava mais calada...dizia que os meus olhos grandes escondiam muita coisa...era imensamente observadora esta senhora!

Aprendi muitas histórias antigas com ela, palavras moçambicanas que ainda se recordava.Vi fotografias e cartas escritas à mão com imensos anos...tinha 84 anos, o seu marido quando faleceu tinha 90 e muitos...ainda me mostrou a primeira carta que o marido lhe escreveu quando começaram a namorar...guardava tudo muito bem guardadinho...

A casa era de extremo bom gosto, móveis caros e escolhidos a rigor. Tudo nos devidos sítios.Tinha gosto no que conseguiu amealhar ao longo da sua vida.
Feitio torcido sim. Mas um coração de ouro.

Lamento imenso que tenha ido embora sem sequer darmos um xi apertado de "até já" porque não gostava de despedidas...infelizmente uma dor acentuada fez com que tivesse de ir para perto do filho mais cedo do que era previsto...e como ela dizia "quando sair da minha casa, prefiro perder tudo".

E foi isso mesmo que aconteceu...perdeu a vida hoje pela manhã, de forma tranquila.Como se estivesse preparada para tal.
Fico com o coração apertado...criam-se laços com nós tão próximos que são difíceis de desatar.
Aflige-me saber que chegou ao fim a história de uma mulher que apesar da idade nunca cedeu nem à dor, nem à falta de memória, nem ao comodismo...

"O que seria de mim sem si?", dizia ela tantas vezes...e sei que o dizia de coração.
Terei muita saudades suas D.Conceição. 
Obrigada por todos os momentos.

Da amiga
A.Pinheiro





Comentários

  1. Lamento a tua perda...mas acredita que fizeste tambem a diferença nesse ano da sua vida...marcaste-a a ela e ela a ti, e é agora isso que fica. Um beijinho. D.

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