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(C)alma

Pai...
Tem algum tempo que não escrevo aqui para ti...tornou-se demasiado doloroso e o tempo, esse maldito tempo nem tudo resolve e...existem alturas em que não nos sentimos tão fortes ou tão capazes de aguentar as lágrimas e cair, ainda que sem nunca ter saído, na realidade.

Estou confinada a casa, a mãe está confinada a casa. Cada uma sozinha...
Temos falado muito de ti, se cá estivesses com esta pandemia. Quase que te imaginamos, do alto das tuas hiper mega preocupações e cuidados com a tua doença, e no meio disso tudo eu a atazanar-te ainda mais com precauções e "faz isto e aquilo".
Seria sem dúvida preocupante, vou vendo as noticias sobre os doentes renais e ainda que não me pareça uma constante preocupação pelo facto de estarem esquecidos...mas tenho em mim que as clinicas conseguem estar minimamente precavidas já de si, uma vez que os tratamentos de diálise são tão rigorosos...

Respiro de alivio por estares "protegido" deste vírus mas depois páro e percebo a tamanha estupidez que isso se torna...eu que tudo daria para te ter novamente. Mas neste momento é tão somente um sentimento dúbio...
A preocupação com racionalidade e o sentimento da alma...

"Calma", "é preciso ter calma, oh Andreia"...tantas vezes que te "oiço" a dizeres-me isso...e eu já a gesticular por todo o lado...

És a minha calma, que me mantinha a alma no sítio. Em tantos aspectos.
E secalhar tens por isso um pouco da sensação que é "não estar na linha da frente" como sabes o quanto eu gostava e dava tudo por aquilo em que acreditava. E gostava de estar. E gostava de enfrentar. E gostava de direccionar.
E tu sabes a garra com que eu fazia as coisas, porque foi a ti que a fui buscar, foste tu que me ensinaste a lutar de pé pelas coisas, a estar de pé mesmo que fosse difícil, sem dar parte fraca...mas a assumir falhas e a pedir auxilio da forma mais humilde que se consiga.

E lamento...
Lamento que nestes últimos tempos as coisas tenham tomado outro rumo.
Lamento nem sempre ter a calma necessária para lidar com tudo.
Lamento que não estejas cá para me acalmar a cabeça.
Lamento não te ter ao encontro das minhas mãos para me aconchegares a alma.

Numa altura em que se fala tanto de não nos podermos abraçar ou dar beijinhos ou estar próximos...pufff...e nós? Desde quando privados desses mesmos gestos? Há quanto tempo não temos nós isso, numa revolta da qual não podemos dar nome...nem quarentena, nem estado de emergência..porque sabemos que não volta...
Há quanto tempo estamos nós sem isso mesmo que todos dizem que faz tanta falta e que sentem saudades? Temos nós um distanciamento infindável, revoltante, agonizante...

E sim, repito-me sempre que te escrevo. Verdade. Mas por mais que tente não consigo perder este sentimento...Uma revolta inquietante misturada com uma saudade que chega a deixar-me sem fôlego...
Fazes-me falta. Mesmo nas horas que refilávamos, fazes-me falta...a tua percepção das coisas, o teu lado visionário e inteligente sobre qualquer assunto...
Tinhas pulso em mim...amenizavas o meu coração e refrescavas a minha cabeça.
Sou impulsiva como tu eras...Sou estoirada como eras...Sou fria e distante como tantas vezes foste...
mas soubeste aprender com os erros...eu vi isso em ti. E espero também eu perceber esse entendimento e que os outros também o consigam ver...

Acho que possivelmente por sermos tão parecidos , eu sinta falta da tua presença. 
E muito provável se cá estivesses eu nem iria desabafar grande coisa contigo...mas aquela troca de olhares...dizia-me tanto e muitas vezes tudo.

Precisava de ti aqui. 
Na minha (c)alma...

Um xi da tua pequenita, Paizito.


A.Pinheiro
14/04/2020


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