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O grito

Pai,
Dois anos e sete meses...um total de 31 meses.
Desta vez demorei a pensar no que realmente queria aqui colocar.
Hoje sinto revolta dentro de mim. 
Hoje a raiva apoderou-se da menina.
Hoje quem escreve não é portanto a menina, mas é uma mulher.
Uma mulher zangada pelas escolhas. Uma mulher que luta sempre mas que por vezes gostaria de baixar a guarda. 
Uma mulher que é filha e que está danada com o pai. Desacreditada da fé. E fodida com o sofrimento da vida.
Sim, é isso mesmo! Sem medo da palavra ser demasiado violenta. Porque violenta é a forma com que temos de nos desenvencilhar para atenuar uma dor que corrói o nosso interior e por vezes nos leva também a corroer todos os outros que estão à nossa volta e não têm culpa. 
Mas nós também não temos. Então quem raio tem?

Hoje, ao fim destes meses todos grito contigo. Grito para ti.Questiono-te. A ti e a mim.Culpo-me.Sim. Mas também te culpo a ti. Culpo-te. Sim, culpo-te.
Porque me deixaste? Porque não te mantiveste na luta? Foi mais fácil assim? 
E eu? Quem me facilita as coisas? Quem? Deixaste-me aqui nesta vida. Abandonaste-me nesta puta desta vida onde tenho de, para além de sobreviver a tudo o que a vida já nos trás, ainda tenho mais uma sobrevivência ...o teres ido embora!Sobreviver ao luto, à perda, às memórias, aos choros. Porquê? Porque escolheste ir embora?

Sobreviver ao desgaste da ausência. Tentar levantar dia após dia sem significado absolutamente nenhum. Eras uma pessoa importante caraças...como se recupera disso? Como consigo dizer sim passaram 31 meses, estou melhor sim",,,Qual quê...dizemos sim, para as pessoas não nos olharem com aquela cara de "coitadita" ou para cortar a conversa por ali...mas cá dentro...Buffff...Só sabe quem passa. Só eu sei. E pode vir a Mãe, a amiga,a pessoa neutra, o amor, o tia ou sei lá quem mais...ninguém entende a sofreguidão que nos encobre interiormente. E o pior...não foi uma escolha minha . Desta vez não fui eu que me magoei. Não fui eu que escolhi desta vez. Estou a sofrer sem ter culpa! Esse é o pensamento de hoje, lamento.

Deus? Não sei. Não defino nada disso. Existo algo que nos comanda, talvez. Pedi muito para ficares cá. A quem? Não sei. Fechava os olhos com muita força, punha a mão no coração e era assim que pedia. Que rezava, Ou que orava. Ou que tão simplesmente falava em voz alta para não me fazerem aquilo...Quem quer que decidisse. Pedi-te a ti também.... Fica. De nada valeu. Quem mandou? Não sei. Mas eu não fui. A mim só me obrigaram.

Obrigaram-me a criar rotinas novas. Alterar modos de estar, de ser. Rebobinar ideais. Reconstruir uma família que ruiu. Recuperar o amor. Reabrir o coração sem medo de sofrer mais e mais e mais.
E não há ajudas possíveis neste campo...não vale a pena ir ao psicólogo, falar com os amigos, com outras pessoas neutras, ir ao cemitério...Pufff...O tempo. Só o tempo. E esse inicialmente mantem a dor mais calma, mais adormecida, mais meiga...mas hoje não...hoje preciso de deitar fora esta raiva que me aperta o peito. 

Hoje preciso de te culpar por me teres deixado aqui. A sofrer por ti.Por tua causa, caraças. És Pai, tinhas de ficar comigo. Cuidar-me.Proteger-me. Ouvir-me. Ralhar-me. Estar. Ser. Manter.
Onde estás para tomar conta de mim? Quem o faz? 
Em quem confio, a quem me dedico, a quem me demonstro, a quem dou o meu coração,a quem baixo a guarda? Não sei...por vezes sinto que estou seca interiormente, tenho uma sensação agridoce em tudo. Desgasta. Desgasta-me sentir-me oca interiormente. Sentir que me faltam peças e nem descobrir onde estão escondidas...para pelo menos tentar. Tentar encaixar.

Um beijo agridoce, Pai
Da tua menina rebelde...mas que te ama. Sempre. 

14/01/2019


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