Avançar para o conteúdo principal

Saudades de Ti

Paizito,

Passaram 10 meses da tua ausência. Estamos na Páscoa e esta era aquela altura em que contavas as amêndoas trazidas da DaVita pelas mãos da Drª Inês. Mais ou menos 6 no pacotinho transparente e com um coelho desenhado a desejar Páscoa Feliz! “Ainda têm bastante trabalho, somos tantos.” Dizias preocupado e contente ao mesmo tempo por se lembrarem de cada um de vós ao longo do tratamento e nas datas mais festivas. Eras regrado no que podias ou não comer. Seguias a maior parte das indicações à risca. Eras interessado por tudo. Eras inteligente para perceberes o mecanismo das coisas, valores a atingir. Foste um doente renal impecável, sem problemas nenhuns ao longo dos tratamentos. Animavas a sala, ajudavas os colegas que estavam ao teu lado, percebias das análises, sabias que peso tinhas de atingir e líquidos a não ingerir. Eras simpático nos transportes de ambulância, ou pelo menos esse é o feedback que tenho até hoje de tudo quanto participavas.

Eras um Homem que preenchias não só um lar familiar, mas também a vida dos teus amigos e conhecidos. Sei que as pessoas sentem a tua falta, vamo-nos cruzando com este ou aquele e torna-se inevitável falar da tua boa disposição para com a vida…Eras sim uma força da natureza.
E contigo aprendi a ser também essa força, ou pelo menos a tentar.

Aprendi contigo a não desistir.
Aprendi que o caminho somos nós que o fazemos, custe muito ou pouco. Na tua opinião fazemos sem pedir ajuda, mas eu aprendi, recentemente, que a ajuda é necessária, porque nem sempre somos capazes totalmente sozinhos.
Aprendi contigo a ter um coração gigante, mesmo para com aqueles que entendemos no nosso interior não serem tão merecedores…mas somos grandes e não sabemos dizer “não”.

Percebi ultimamente que sorrir é o mais fácil. Dizer que está tudo bem é o caminho mais prático, aquele que evita explicações demoradas e melindrosas.
Percebi que podemos contar connosco mesmo, e que por mais que desejes ter um ombro de alguém e dois ouvidos, jamais entenderão o que estás a tentar descrever…somente quem passa pelo mesmo. Somente quem perde um grande amor entende este sentimento de vazia, uma lacuna na vida. Os dias parecem não terminar, a saturação é inevitável. As noites são ainda mais sombrias, O coração bate descompassadamente quando te recordas de que esta é a realidade. O agora é assim, cruel, solitário e diferente.

Diferente.
Não sei se será a palavra correto. Surreal também daria. Uma nova vida também serviria como palavra. Adaptação. Sim, adaptação parece-me o mais acertado. Passaram tantos dias, olho para trás e visualizo tudo…por mais que me doa. É um exercício que tenho tentado fazer de não lembrar, mas é inevitável. Penso muito nisso como forma de te recordar também. Tenho medo de me esquecer de ti. A voz ainda recordo e o riso…ai o riso meu Deus…que preenchimento que era, Pai…

Esta semana li um texto algures em que a pessoa tinha exatamente o mesmo medo…do esquecimento da presença, do toque, do som, da voz…essas são as nossas memórias de quem fica. E as tuas quais serão? Gostava tanto de saber… Penso tanto em ti, sinto tanto a tua falta que por vezes nem sei como aguento esta adaptação. Mas a verdade é que aqui estou. Erguida.
Será que foi mais um prova? A vida colocou-me novamente mais um desafio para ver até onde eu estava preparada, será que foi? Aprendi contigo, foi esta a tua herança. Sobreviver no lodo. Erguer-me. Manter-me à tona, custe o que custar porque senão nada do que tínhamos enfrentado tinha valido a pena.
Estavas preparado para nos deixar, tenho pensado tanto nisso. Tu sabias que ias embora. Sabias que eu e a mãe não contávamos, mas que íamos sobreviver. Ela tem sido uma grande mulher, tu vês, não é? Quase nunca fraqueja, e tenta ter sempre aquela disposição de espirito positivo, mesmo que olhe para mim e eu esteja no lodo…Passa-me a mão pela cabecita e diz “ Vá, não estejas assim, ele não ia gostar disso, sabes bem” e eu olho para ela com o coração cheia de orgulho e a desejar ser assim…mas não tenho conseguido…

Perder-te não tem explicação. Esta semana tive um funeral e agora entendo que não deveria ter ido. Recordei o local, o dia, as pessoas, as flores, os cheiros. Penoso demais. Real demais.
Ir ao cemitério, apesar de entender que ali é somente um monte de terra e preferir fechar os olhos e falar contigo, tenho algo que me puxa para lá. Talvez o teu medo de estares sozinho. Não gostavas. Quantas e quantas vezes no hospital me dizias para não ir embora, e aquilo estava sempre cheio de gente. Mas o facto de sentires que não está ninguém teu, foi algo que sempre te inibiu. E talvez por isso goste de ir ao cemitério. Umas vezes saio de lá de rastos sim, outras venho leve e com um sorriso. Mas ainda assim, não tenho conseguido não ir.  E o mesmo se passa com inúmeras pessoas. Por lá encontro amigos com perdas recentes, mas o luto e o sofrimento são exatamente o mesmo. Encontro conhecidos que raramente falamos, mas os olhares naquele lugar falam por si. É uma multiculturalidade de sentimentos, de almas e de penitências.

Lamento sentir este vazio, esta sensação de oco interiormente.
Lamento perceber que a magia existente nas quatro paredes que habitávamos se perdeu, algures por aí. Foi embora contigo, e iria embora com qualquer um de nós. Perder-se quem se ama é uma dor sem fim à vista. Contam-se os dias, contam se os meses e por mais que não que queira naquele dia daquele mês, vamo-nos abaixo. Às 6h40 Queremos gritar com o Mundo “Porquê com a nossa casa, porquê o meu Pai, porquê agora, porquê a nós”
Existirá sempre a dor dos porquês, como aprendi a chamar.

E o tempo, o nosso amigo tempo, trará uma saudade persistente, mas mais contida. Acredito nisso. Preciso de acreditar que não vou sentir “isto” assim eternamente. Não quero esquecer-te, mas quero lembrar-te sem chorar, sem nó na garganta, sem o coração apertado.
Ajudas-me?

Este ano não roemos as amêndoas, enquanto eu te atazanava a dizer “já chega, olha os valores da próxima semana.” E tu respondias, com ar de rebelde, “oh Andreia, vá não contes, é só mais esta.”
Fomos felizes!!

Um beijinho da tua menina,
Que tem tantas saudadinhas tuas

Andreia

14/04/17


Comentários