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Amor de filha

Paizinho,
Estou já à 5 meses sem a tua presença. 
Estou à este tempo todo sem ouvir os 5 sentidos que tanto fazias questão de usar e por vezes abusar...quando falavas tanto até eu dizer "mas que chato" e tu respondias com aquele ar que me irritava ainda mais "estava a ver que não refilavas"...como me enervava, mas fazia me sempre esboçar um sorriso assim disfarçado...Que saudades. Coisinhas de pai e filha, não é?

Hoje preciso que me oiças com muita atenção. Quero confessar-te uma coisa...
Quero confessar-te que jamais pensava que te pudesse amar tanto. Quero confessar, a ti e a todos aqueles que nos lêem, sem vergonha de o escrever, que jamais pensava que fosse sentir tanto a tua falta. 
Quero sussurrar-te com todas as letras o quanto te amo. Quero gritar ao mundo o amor incondicional de uma filha dorida, ferida,massacrada pela tua ausência. Mas ainda assim uma filha que entende que isto é o amor. O amor ao Pai, o amor à família, aos valores, às crenças. O amor à presença mas também à ausência. Puro amor. Simples assim. Mas difícil assim também.

Sempre tivemos um feitio difícil. Possivelmente por ser muito semelhante na teimosia e no orgulho. Com o passar do tempo, o meu amadurecimento e a tua fatalidade na doença renal, aproximou-nos como nunca antes tínhamos estado. Desde 2010 que passei a viver muito para ti, que passei a estar em todas as frentes por causa de ti, das mudanças nas nossas vidas,de toda uma adaptação à doença que felizmente sempre encaraste pela positiva e que na fatalidade da tua vida não foi ela que te derrubou...Sempre disseste que ias lutar e ias vencer e verdadeiramente nesse aspecto sem dúvida que conseguiste. Tenho tanto orgulho em ti!

Eu quis estar. Pela obrigação. Pelo dever de filha. Mas essencialmente pelo direito enquanto filha. E penso que tu também querias a minha presença. A doença uniu-nos e cada dia foi sempre uma vitória, uma guerra ganha na maior parte das vezes e olhava para ti com um orgulho tamanho...ainda que ache que nunca to tenha verbalizado...tenha quase a certeza que nunca te olhei nos olhos e disse "Pai, és um vencedor e tenho muito orgulho!".
Não.Desta forma não o disse e agora tenho imensa pena.Imensa pena de ser tão fechada, até contigo...mas acredito que o tenha dito de outras formas...de muitas outras formas...nem que fosse quando ralhava contigo por teimosias nossas.

Amo-te, Pai...
Disse-o sempre que me preocupava, disse-o sempre que te acompanhei.
Disse-o sempre que pesquisei novas informações, disse-o sempre que acreditei que ias conseguir e não desistir.
Disse-o sempre que me ligavas e vice versa por mais pequenas coisas. Nas alegrias e nas tristezas. Nos desentendimentos e nas concordâncias. Nos dias fáceis e nos complicados.
Com chuva ou sol radiante. Com muita calma umas vezes, e com pouca paciência em outras.

Amo-te, Pai...
Disse-o baixinho, muitas das vezes sem tomar consciência do que era esse amor. 
Amor de filha. Sem igual. Sem comparações. Sem substituições. E somente com essa noção real quando sentimos mais a falta, quando a presença não é tão constante, quando a presença física não está à distância duma chamada, dum toque, dum vislumbre. 
Amor de filha. Verdadeiro. Único. Não palpável nem qualificável. Muito ou pouco. Não existe a medida certa. Tão somente amor. 

Algo que nos faz sorrir e chorar em simultâneo.
Algo que nos preenche e nos esvazia.
Algo que inspiramos e expiramos.
Cresce e amadurece.
Respeita e acrescenta.
Cuida de nós. Respira connosco.
Algo que todos temos cá dentro mas nem sempre o conseguimos pronunciar, mas que todos o conseguimos revelar...nas atitudes,mais corretas ou não, nas posturas,mais conformes ou não, nos gestos, mais ou menos carinhosos. 
O verbalizar, sim, é importante também, mas agora percebo que poucas vezes o verbalizei mas isso nunca transpareceu no meu amor por ti. Pelo contrário, talvez entendendo essa lacuna, eu tivesse tentado estar sempre mais presente, mais conhecedora de tudo, apta para fazer melhor e mais, numa tentativa de te mostrar "estou aqui".

"Amo-te, Pai...amo-te muito, sim?"
Disse-o naquela segunda feira durante todo o dia em que tive ao teu lado, sussurrei-o nesse dia ao teu ouvido vezes sem conta... "amo-te muito" e nunca soube se o tinhas ouvido, mas gosto de acreditar que sim, apesar de não teres dado nenhum sinal que eu tenha entendido como tal.
Disse-o quando te segurava as mãozitas e repetia outras tantas vezes sem conta "tu consegues". 
Disse-o a olhar para aquele tecto imaculadamente branco e com luzes que me desfocavam a vista de tanto fixar nelas...
Disse-o de tantas formas nesses que foram os 15 dias mais difíceis da minha vida e que relembro de trás para a frente inúmeras vezes nestes cinco longos meses...
Sussurrei-te tanto aos ouvidos o meu amor de filha que quase nada ficou por dizer e não sinto vergonha de entender que só agora entendi o que é esse amor real. 
A tua falta, o quanto gosto de ti, a noção desse gostar e desse amor não se  consegue ter na presença. Somente agora percebi a imensidão dele. Só agora entendi a dimensão do nosso amor ao longo destes 34 anos. Da pior forma, entendo agora o meu amor incondicional por ti.

Entendo que o meu amor por ti é transportado para a menina da foto, de nariz arrebitado, a subir por ti acima para te dar estalinhos nas orelhas. 
É transportado para o fechar de olhos para ouvir assim a tua gargalhada.
É transportado para o aperto das mãos, sempre que toco no meu anel do dia da criança.
É transportado sempre que converso contigo na esperança dum caminho melhor.
É transportado sempre que me falam de ti, para contar histórias, brincadeiras, para valorizar a vida que viveste e soubeste viver.
É transportado e levado no meu enorme coração que me deste e do qual cuidaste neste tempo todo.

O meu amor por ti foi incondicional, sem me aperceber. 
O meu amor de filha por ti é incondicional mesmo estando ferida e desiludida com todo o universo por ter chegado a tua hora. 
O meu amor de filha será sempre teu, daqui até mais além. 

Amo-te muito , Paizinho.
Um beijo da tua menina 
Andreia
14/11/2016



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